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O código cerebral da depressão foi decifrado?


Cerca de 1 em 4 pacientes com depressão não responde ou não tolera tratamento com medicamentos e para saber se cada paciente responderá são necessários de 1 a 2 meses de terapia. Eventualmente o paciente responde apenas ao segundo ou terceiro tratamento e isso prolonga seu sofrimento por vários meses.


Em outras áreas da medicina, como no tratamento do câncer, o resultado de exames laboratoriais permite escolher o tratamento ideal com antecedência e com isso ganhar tempo e qualidade de vida. Essa realidade pode finalmente estar próxima de ocorrer também no tratamento de doenças psiquiátricas.


Em um trabalho publicado na revista Nature Medicine em Dezembro de 2016, combinando técnicas de ressonância magnética com métodos computacionais semelhantes aos utilizados em “mineração de dados” e “aprendizado de máquina”, um grupo de 22 pesquisadores liderados pelo Dr. Conor Liston conseguiu “decifrar” 4 tipos de padrão distintos na depressão e prever com até 94% de acerto a resposta de um desses tipos ao tratamento da depressão com estimulação magnética transcraniana.



O novo "retrato cerebral" da Depressão. Qual o seu tipo?

A escolha da estimulação magnética transcraniana para servir de parâmetro aos novos marcadores biológicos não foi ao acaso. O que se estudou nos pacientes com depressão foi o padrão de atividade e conectividade entre regiões do cérebro, e é justamente nesses parâmetros que age a estimulação magnética transcraniana. Relacionando as estruturas com alteração e as estruturas alvo do tratamento com estimulação magnética haveria maior facilidade em elaborar hipóteses sobre os mecanismos da doença e do tratamento. Ainda não foi investigada a utilidade do método para prever resposta a medicamentos.


Em medicina, geralmente o tratamento é decidido de forma empírica, ou seja: mesmo que não se conheçam exatamente os mecanismos de uma certa doença e os mecanismos de um tratamento, a demonstração de que o tratamento funciona em um grupo com as mesmas características já é suficiente para indicá-lo. À medida em que mecanismos são decifrados, a medicina evolui de empírica para lógica. A eficiência dos tratamentos tende a melhorar e mesmo a definição e classificação de doenças evolui.


O trabalho publicado na Nature foi baseado na análise de dados de 1180 pacientes avaliados em múltiplos centros nos Estados Unidos e Canadá. Se o método utilizado nesse trabalho for adotado ao redor do mundo, o diagnóstico de depressão ganhará um novo classificador que poderá permitir escolha de tratamento com maior eficácia e mais rapidez.


O desenvolvimento de medicamentos antidepressivos mais seguros e melhor tolerados, a partir do final dos anos 80, contribuiu para propagar a "hipótese química" da depressão, como um déficit de serotonina ou de outro neurotransmissor.


Uma simplificação similar, baseada nos achados de ressonância funcional encontrados nas décadas seguintes e corroborados por esse estudo, favorece a hipótese da depressão como um distúrbio de conectividade entre estruturas reguladoras do humor.


O córtex pré-frontal lateral, a área que mais distingue o cérebro humano de outros animais e fundamental para o planejamento e o controle voluntário de nossas ações e pensamentos, tem menos "comando" sobre o córtex límbico nos pacientes deprimidos. O córtex límbico, situado principalmente em áreas mais profundas do cérebro, tem menos camadas de neurônios (é também chamado de "córtex primitivo") e é fundamental para nossa motivação e para dar o "colorido emocional" ao que percebemos.


Para ter uma idéia da complexidade desses circuitos e entender porque foi necessário recorrer a técnicas para análise de grandes bancos de dados, basta um breve retrospecto de como evoluiu o “mapa” do cérebro.


À medida em que se torna mais complexo o modelo de estrutura e função cerebral, a análise humana pede ajuda da matemática para decifrar os achados.

Até o final do século 19, a delimitação de regiões cerebrais era baseada na anatomia macroscópica e sua função deduzida por observar deficiências em pacientes com lesão cerebral. Em 1909, o Neurologista alemão Korbinian Brodmann, analisando ao microscópio a arquitetura do córtex cerebral, percebeu que áreas de córtex em uma mesma região possuiam uma estrutura celular diferente. Brodmann identificou 52 regiões distintas de córtex.


Nos anos 40 e 50, além da localização de função por observação de pacientes lesionados, o Neurocirurgião canadense Wilder Penfield introduziu o método de mapeamento de função por meio de estimulação elétrica direta do córtex em pacientes operados com anestesia local.



Os aspectos mais básicos de funções como visão, linguagem, motricidade e mesmo a formação de novas memórias puderam ser explicados pelo modelo “lesional”, porém os mecanismos por trás de doenças psiquiátricas como a depressão resistiam a explicações por essa abordagem.


Uma ferramenta mais poderosa para avaliar a função cerebral surgiu em meados dos anos 90. O método BOLD MRI, que cria imagens com base em variações no teor de oxigenação da hemoglobina no tecido cerebral. Quando aumenta a atividade em uma região cerebral, rapidamente aumenta o fluxo cerebral para essa região e muda a extração de oxigênio. Isso cria um contraste entre áreas mais ativas e menos ativas, visíbel pela BOLD MRI, e essa atividade muda a um ritmo de até 2 vezes por segundo. O mapa cerebral que se constrói com essa técnica é muito mais complexo que o mapa de Brodmann.


Primeiro porque a quantidade de regiões que se comporta como “grupo funcional” é maior. O método de divisão em grupos funcionais mais adotado divide o cérebro em 258 regiões.


Em segundo lugar porque esse mapa é dinâmico. Melhor seria compará-lo não a um mapa mas a um “filme” da atividade cerebral projetado a uma velocidade de 2 quadros por segundo.


O terceiro elemento de complexidade a ser computado é a possibilidade de medir o “tráfego” entre cada par de regiões. 258 regiões formam 33153 pares distintos e é possível medir o quanto cada região está “acoplada” a outra em um par. Quanto mais sincronizada está a oscilação de atividade entre duas regiões, mais elas estão acopladas ou, dito de outra maneira, maior o “tráfego” entre ambas.


A melhor maneira de representar o que a ressonância funcional visualiza, considerando essa complexidade, é algo análogo a um mapa com 258 endereços e 33.153 ruas com cores diferentes em cada rua de acordo com o tráfego. Esse mapa aparece na figura a esta página como uma matriz de conectividade cerebral. Trata-se de um gráfico com 258 pontos em cada eixo e colorido conforme o grau de conectividade entre cada par de pontos distintos.



"The Matrix": O cérebro do deprimido visto pelo computador como uma matriz. Na imagem acima a matriz é simplificada para 50 x 50. A matriz original do estudo foi de 258 x 258 pontos.

A grande invovação do Dr Liston foi o método para classificar e encontrar padrões nessa imensidão de dados em 711 pacientes (333 com depressão e 378 saudáveis). Uma das principais ferramentas foi a “análise de correlação canônica” (CCA), que está na base dos novos campos de aprendizado de máquina e mineração de dados tão falados na área da ciência da computação.


No estudo do Dr. Liston, ao se comparar com pacientes saudáveis os dados de pacientes com depressão, foram delimitados com clareza 4 diferentes padrões de alteração.


Cada um desses 4 biotipos foi encontrado com frequência relativamente similar (24, 23, 20 e 33 %), e sua ocorrência não teve relação com a gravidade da depressão (com exceção do biotipo II, que tinha uma gravidade levemente menor). O método demonstrou solidez ao ser replicado em uma segunda fase do estudo em 13 diferentes centros e outros 477 pacientes.



Tolstoy começaria Anna Karenina com a frase: Todas as famílias felizes são iguais. Cada família infeliz pode ser infeliz de 4 maneiras

Marcadores biológicos como esse revelam sua utilidade quando permitem prever o comportamente de uma doença e sua resposta ao tratamento. Esse foi o objetivo da fase final do estudo: 154 pacientes com depressão dos 4 biotipos foram submetidos a tratamento com estimulação magnética transcraniana em córtex dorsomedial bilateralmente usando o mesmo protocolo de estudo de Downar e Bakker publicado em 2015 e também já mencionado nesse site.


Demonstraram que o biotipo I responde excepcionalmente melhor ao tratamento com estimulação magnética transcraniana (83% melhoram), o biotipo III responde de maneira moderada (61%) e os biotipos II e IV respondem pouco (25 a 30%).


Se, além do biotipo, forem avaliadas a conectividade entre 2 grupos de estruturas, um que inclui alvos diretos da estimulação magnética (córtex dorsomedial, amígdala esquerda, córtex dorsolateral prefrontal à esquerda, córtex orbitofrontal à esquerda) e outro que não inclui alvos diretos da TMS (VMPFC, tálamo, núcleo accumbens e globo pálido), a capacidade de prever resposta à TMS chega a 90%. Se, além disso, forem eliminados resultados limítrofes, a capacidade de prever resposta fica acima de 94%.


Quando o método chegar ao uso clínico, além de diagnóstico de depressão, os médicos poderão diagnosticar se a depressão é do biotipo I, II, III ou IV.


Por enquanto o método só demonstrou utilidade para prever a resposta a um protocolo específico de estimulação magnética transcraniana, que nem é o mais usado clinicamente (o alvo mais comum é a convexidade dorsolateral à esquerda e não o córtex dorsomedial). Novos estudos talvez demonstrem que um dos biotipos responde melhor a medicações específicas, a outros protocolos de estimulação magnética ou a outros tratamentos para depressão.


A implementação do método também depende de configurações complexas de softwares de análise e de treinamento de médicos que tipicamente custa alguns anos até se disseminar com a qualidade do estudo original.


O estudo, publicado em um dos periódicos médicos de maior impacto no mundo, chama também atenção ao tratamento da depressão por estimulação magnética transcraniana, um método seguro, mais fisiológico, e que, apesar de já bem estabelecido como eficaz, ainda é disponível em relativamente poucos serviços de atenção psiquiátrica no Brasil.


Referências:

1: Drysdale AT, Grosenick L, Downar J, Dunlop K, Mansouri F, Meng Y, Fetcho RN, Zebley B, Oathes DJ, Etkin A, Schatzberg AF, Sudheimer K, Keller J, Mayberg HS,Gunning FM, Alexopoulos GS, Fox MD, Pascual-Leone A, Voss HU, Casey BJ, Dubin MJ, Liston C. Resting-state connectivity biomarkers define neurophysiological subtypes of depression. Nat Med. 2016 Dec 5.



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