top of page

Transtornos de Tolerância aos Sons (Parte I)

Anna Carolina Marques Perrella de Barros, Fátima Cristina Branco Barreiro, Piotr Henryk Skarzynski e Milaine Dominici Sanfins


O presente boletim abordará um tema de muita relevância clínica, os Transtornos de Tolerância aos Sons (TTS). Entretanto, ainda há muitos questionamentos e diversos pontos que devem ser esclarecidos e aprofundados. Assim sendo, convidamos você a nos acompanhar nesta trajetória neste campo tão desafiador e deslumbrante do TTS.


O QUE SIGNIFICA O TERMO TOLERÂNCIA AOS SONS?


A tolerância a sons, um elemento crucial para o bem-estar humano, representa a capacidade individual de suportar e se adaptar a diferentes intensidades e tipos de estímulos sonoros sem experimentar reações adversas significativas, como:


  • desconforto;

  • dor;

  • alterações fisiológicas e psicológicas.


Todavia, existem alguns indivíduos que reportam reações negativas aos sons evidenciando, desta maneira, uma tolerância reduzida aos estímulos sonoros. Essa capacidade, intrinsecamente variável entre indivíduos, é modulada por uma complexa interação de fatores fisiológicos, psicológicos e ambientais.


FATORES FISIOLÓGICOS:


  • Saúde Geral: Doenças crônicas, como diabetes, hipertensão e doenças autoimunes, por exemplo, podem afetar o sistema auditivo e reduzir a tolerância a sons. Condições neurológicas, como enxaqueca e epilepsia, também podem influenciar a sensibilidade auditiva.


  • Idade: O processo natural de envelhecimento impacta a audição, comumente resultando em presbiacusia, a perda auditiva gradual relacionada à idade. Essa condição afeta a capacidade de discriminar frequências, especialmente sons agudos, e também pode resultar em uma redução de tolerância aos sons.


  • Acuidade Auditiva: A estrutura e a função do sistema auditivo, incluindo a sensibilidade das células ciliadas na região da cóclea, influenciam, diretamente, na percepção e na tolerância aos sons. Variações na sensibilidade auditiva podem ser hereditárias ou adquiridas, como em casos de lesões ou doenças que envolvem o Sistema Nervoso Auditivo Periférico e/ou Central.


FATORES PSICOLÓGICOS:


Estado Emocional: O estado emocional modula a percepção sensorial. Exemplificando, sintomas como ansiedade, estresse e fadiga podem aumentar a sensibilidade e, consequentemente, reduzir a tolerância a sons. Cabe aqui, mencionar que, as manifestações emocionais podem ocorrer mesmo para um estímulo sonoro de fraca intensidade e, frequentemente, não está associado ao nível de audibilidade do indivíduo. A justificativa destes achados é que, nos distúrbios de tolerância aos sons, pode decorrer do envolvimento do sistema auditivo, do sistema límbico e do sistema nervoso autônomo.


• Experiências Prévias: Vivências traumáticas associadas a sons específicos podem gerar respostas condicionadas de medo ou aversão, impactando na tolerância sonora.


• Traços de Personalidade: Indivíduos com traços de introversão ou alta sensibilidade sensorial tendem a apresentar menor tolerância tanto a ambientes ruidosos quanto a estímulos sonoros intensos.


FATORES AMBIENTAIS:


  • Tipo de Som: A frequência, complexidade e previsibilidade do som influenciam sua percepção. Sons agudos, irregulares e imprevisíveis tendem a ser menos tolerados do que sons graves, harmônicos e previsíveis.


  • Intensidade: A intensidade sonora, medida em decibéis (dB), é um fator crucial na tolerância. Exposição prolongada a sons acima de 85 dB pode causar danos permanentes às células ciliadas da cóclea, levando à perda auditiva.


  • Duração da Exposição: O tempo de exposição ao som é determinante para a tolerância. Mesmo sons de intensidade moderada podem se tornar intoleráveis com a exposição prolongada.


  • Contexto: O contexto em que o som ocorre influencia sua percepção e tolerância. Sons considerados agradáveis em um determinado contexto podem ser perturbadores em outro.


CONSEQUÊNCIAS DA DIMINUIÇÃO DA TOLERÂNCIA A SONS:


A diminuição tolerância a sons pode acarretar diversas consequências negativas para a saúde e o bem-estar, incluindo:


  • Problemas de Saúde Mental: A diminuição da tolerância a sons por si só não leva a complicações físicas adicionais. No entanto, o fardo psicológico pode resultar em morbidade significativa, como aumento do estresse, ansiedade, irritabilidade, insônia, e, consequente comprometimento da qualidade de vida. O ruído excessivo contribui para o aumento do estresse, ansiedade, irritabilidade, dificuldades de concentração, distúrbios do sono e redução da qualidade de vida, entre outros.


  • Problemas Sociais: pode afetar as interações sociais e levar uma pessoa a evitar reuniões sociais ou locais públicos na tentativa de escapar de sons intensos, o que leva a sentimento de isolamento.


A diminuição da tolerância a sons pode manifestar-se em condições como hiperacusia (sensibilidade aumentada a sons) e misofonia (aversão a sons específicos).


HIPERACUSIA X MISOFONIA


Existem semelhanças e diferenças entre hiperacusia e misofonia. No quadro abaixo, didaticamente, pode-se observar os aspectos específicos que delimitam cada distúrbio e que servirá de base para o aprofundamento do tema.


*A misofonia ainda não é reconhecida ou classificada no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais quinta edição (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders- DSM-5) ou na Classificação Internacional de Doenças (CID-11).
*A misofonia ainda não é reconhecida ou classificada no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais quinta edição (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders- DSM-5) ou na Classificação Internacional de Doenças (CID-11).

Cabe ainda mencionar que o desconforto aos sons pode ainda ocorrer e se manifestar em diferentes contextos e por mecanismos distintos. Um desses cenários é a presença de recrutamento.


O QUE É RECRUTAMENTO?


Trata-se de um fenômeno coclear que ocorre em indivíduos com perda auditiva do tipo neurossensorial. Para compreender o recrutamento, é fundamental destacar a complexa dinâmica da cóclea, estrutura responsável pela transdução do som em impulsos nervosos.


Nas células ciliadas externas da cóclea, existe um mecanismo de amplificação que permite a percepção de sons em diferentes intensidades. Em indivíduos com perda auditiva do tipo neurossensorial, especialmente quando há dano nessas células ciliadas externas, esse mecanismo de amplificação é comprometido.


O recrutamento surge nesse contexto como uma resposta anormal ao aumento da intensidade sonora. A percepção do volume sonoro se torna distorcida, com uma rápida transição de um som fraco para um som intensamente alto e desconfortável.


Imagine que o volume do som seja controlado por um botão giratório: em uma audição normal, a rotação do botão aumenta o volume de forma gradual e linear. No recrutamento, o controle de volume se torna impreciso, com saltos abruptos na intensidade sonora.


ree

Essa sensação de desconforto e distorção sonora impacta significativamente a qualidade de vida dos indivíduos, dificultando a comunicação, a participação em atividades sociais e o apreciar de música. O recrutamento pode estar associado a diversas causas, como:


  • exposição a ruídos intensos;

  • processo de envelhecimento;

  • doenças;

  • fatores genéticos.


Cabe ressaltar que o recrutamento é um fenômeno exclusivo da perda auditiva coclear e pode coexistir com algum outro transtorno da tolerância aos sons.


AVALIAÇÃO E DIAGNÓSTICO DOS TRANSTORNOS DA TOLERÂNCIA AOS SONS


O diagnóstico preciso do recrutamento é fundamental para a implementação de estratégias de manejo adequadas.


A audiometria tonal liminar é essencial para investigar a presença ou não de perda auditiva, que é condição obrigatória para o recrutamento.


A pesquisa do reflexo acústico estapediano é indispensável na investigação da presença do recrutamento, cuja análise é feita considerando-se os limiares dos reflexos acústicos estapedianos e os limiares auditivos tonais obtidos à audiometria.


A determinação dos limiares de desconforto para sons (loudness discomfort levels - LDL), juntamente com entrevista e questionários específicos, como o Questionário de Hiperacusia, são essenciais para a determinação da presença e do tipo de transtorno de tolerância aos sons.


Referências:


  1. Andersson G, Lindvall N, Hursti T, Carlbring P. Hypersensitivity to sound (hyperacusis): a prevalence study conducted via the Internet and post. Int J Audiol. 2002 Dec;41(8):545-54. doi: 10.3109/14992020209056075. PMID: 12477175.


  2. Bastos S, Sanchez TG. Validation of the Portuguese version of hyperacusis questionnaire and comparison of diagnostic skills with loudness discomfort levels. Otolaryngol Res Rev. 2017;1:49-54.


  3. Cederroth CR, Lugo A, Edvall NK, Lazar A, Lopez Escamez JA, Bulla J, Uhlen I, Hoare DJ, Baguley DM, Canlon B, Gallus S. Association between Hyperacusis and Tinnitus. J Clin Med. 2020 Jul 28;9(8):2412. doi: 10.3390/jcm9082412. PMID: 32731492; PMCID: PMC7465629.


  4. Coey JG, De Jesus O. Hyperacusis. 2023 Aug 23. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2025 Jan–. PMID: 32491645. Jastreboff PJ, Jastreboff MM. Decreased sound tolerance: Hyperacusia, misophonia, diplacousis, and polyacousis. In: Handbook of Clinical Neurology. 2015;129:375-87. doi: 10.1016/ B978-0-444-62630-1.00021-5.


  5. Jastreboff PJ, Jastreboff MM. Tinnitus and Decreased Sound Tolerance. In: Wackym PA, Snow JB, editors. Ballenger’s Otorhinolaryngology Head and Neck Surgery. Connecticut: People’s Medical Publishing House-USA; 2016. v.1, p. 391-404.


  6. Khalfa S, Dubal S, Veuillet E, Pérez-Díaz F, Jouvent R, Collet L. Psychometric normalization of a hyperacusis questionnaire. ORL J Otorhinolaryngol Relat Spec. 2002;64(6):436-42. doi: 10.1159/000067570.


  7. Onishi ET, Coelho CCB, Oiticica J, Figueiredo RR, Guimarães RCC, Sanchez TG, et al. Tinnitus and sound intolerance: evidence and experience of a Brazilian group. Braz J Otorhinolaryngol. 2018 Mar-Apr;84(2):135-49. doi: 10.1016/j. bjorl.2017.12.002. Epub 2017 Dec 24. PMID: 29339026; PMCID: PMC9449167.


  8. Rosing SN, Schmidt JH, Wedderkopp N, Baguley DM. Prevalence of tinnitus and hyperacusis in children and adolescents: a systematic review. BMJ Open. 2016 Jun 3;6(6) :e010596. doi: 10.1136/ bmjopen-2015-010596. PMID: 27259524; PMCID: PMC4893873.


  9. Sanchez TG, Silva FE. Familial misophonia or Selective Sound Sensitivity Syndrome: evidence for autosomal dominant inheritance? Braz J Otorhinolaryngol. 2018;84:553---59.


  10. Kumar S, Tnasley-Hancock O, Sedley W, Winston JS, Callaghan MF, Allen M, Cope TE, Gander PE, Bamiou DE, Griffiths TD. The Brain Basis for Misophonia, Curr Biol. 2017; 27 (4): 527-33. American Psychiatric Association (2012).


  11. American Psychiatric Association Board of Trustees Approves DSM-5: diagnostic manual passes major milestone before May 2013 publication.Washington: APA. Disponível em http://totallyadd. com/wp-content/uploads/ DSMIV.pdf.


  12. World Health Organization. ICD-11 implementation or transition guide. Geneva: WHO; 2019 [cited 2019 Aug 20]. License: CC BY NC-SA 3.0 IGO. Available from: https://icd.who. int/docs/ICD-11%20Implementation%20or%20 Transition%20Guide_v105.pdf.


  13. Möllmann A, Heinrichs N, Illies L, Potthast N, Kley H. The central role of symptom severity and associated characteristics for functional impairment in misophonia. Front Psychiatry. 2023 Mar 28;14:1112472. doi: 10.3389/ fpsyt.2023.1112472. PMID: 37056403; PMCID: PMC10086372.



    AUTORES


    ree

     FGA. DRA. ANNA CAROLINA MARQUES PERRELLA DE BARROS

  • Fonoaudióloga Clínica;

  • Doutora e Mestre em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Distúrbios da Comunicação Humana da Universidade Federal de São Paulo/ Escola Paulista de Medicina (UNIFESP/EPM);

  • Especialização em Audiologia Clínica pela Irmandade de Misericórdia da Santa Casa de São Paulo e pelo Centro de Estudos dos Distúrbios da Audição (CEDIAU);

  • Graduação em Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP);

  • Professora do Curso de Especialização em Audiologia Clínica (Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein e Faculdade CEAFI) e de cursos de extensão (Fonoaudiálogo).

  • Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Zumbido e Sensibilidade a Sons Prof. Yotaka Fukuda, da Universidade Federal de São Paulo.


ree

PROFA. DRA. FÁTIMA CRISTINA BRANCO BARREIRO

  • Professora Adjunta da Disciplina dos Distúrbios de Audição do Curso de Fonoaudiologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP);

  • Doutorado em Neurociências e Comportamento pela Faculdade de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP);

  • Especialista em Audiologia pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia;

  • Graduação e Mestrado em Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP);

  •  Diretora Secretária da Academia Brasileira de Audiologia (2015-2017 e 2023-2025);

  • Membro da comissão de ensino e pesquisa da Academia Brasileira de Audiologia (2018-2020 e 2020-2022);

  •  Revisora de artigos científicos e capítulos de livros na área de Audiologia, Otoneurologia, Zumbido e Hipersensibilidade a Sons.

PROF. DR. PIOTR HENRYK SKARZYNSKI
PROF. DR. PIOTR HENRYK SKARZYNSKI
  • Professor, Otorrinolaringologista, Mestre e Doutor pela Medical University of Warsaw;

  • Realiza trabalho científico, didático, clínico e organizacional no World Hearing Center of Institute of Physiology and Pathology of Hearing, Institute of Sensory Organs and Medical University of Warsaw;

  • Especialista em otorrinolaringologia, otorrinolaringologia pediátrica, fonoaudiologia e saúde pública;

  • Participou da 3ª Reunião de Consulta no Fórum Mundial de Audição da Organização Mundial de Saúde (OMS);

  • Membro do Roster of Experts on Digital Health da OMS;- Vice-Presidente e Representante Institucional do ISfTeH;

  • Presidente eleito do Conselho Consultivo Internacional da American Academy Otoringology - Head and Neck Surgery (AAO-HNS);


  • Membro do Departamento de Congressos e Reuniões da European Academy of Otology and Neuro-otology (EAONO), Representante Regional da Europa da International Society of Audiology (ISA), Vice-Presidente do Hearing Group, Auditor da European Federation of Audiology Societies (EFAS), membro do Facial Nerve Stimulation Steering Committee;

  • Secretário do Conselho da Sociedade Polonesa de Otorrinolaringologistas, Foniatras e Audiologistas. Membro da Comissão de Auditoria (2018–2019);

  • Embaixador da Boa Vontade representando a Polônia no Encontro Anual e Experiência OTO da AAO-HNSF 2021 e, desde 2021, membro do Comitê de Dispositivos Auditivos Implantáveis e do Comitê de Educação em Otologia e Neurotologia da AAO-HNS;

  • Comitê Consultor de Especialistas Internacionais do CPAM-VBMS, membro honorário da ORL Danube Society e membro honorário da Société Française d’OtoRhino Laryngologie;

  • Membro do Conselho do Centro Nacional de Ciências.

PROFA. DRA. MILAINE DOMINICI SANFINS
PROFA. DRA. MILAINE DOMINICI SANFINS
  • Professora Adjunta da Disciplina dos Distúrbios de Audição do Curso de Fonoaudiologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP);

  • Membro do grupo de pesquisa do Institute of Physiology and Pathology of Hearing and World Hearing Center, Kajetany, Poland;

  • Professora do Curso de Pós-Graduação em Audiologia Clínica pelo Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa do Hospital Albert Einstein.

  • Pós-doutorado pelo World Hearing Center, Varsóvia, Polônia;

  • Doutorado sanduíche pela Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (FCM UNICAMP) e pela Università degli Studi di Ferrara/Italy;

  • Especialista em Audiologia pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia;

  • Graduação e Mestre pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP);

  • Membro da comissão de ensino e pesquisa da Academia Brasileira de Audiologia (2024-2026);

  • Relatora do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo;

  • Revisora de artigos científicos e capítulos de livros na área de Audiologia, Eletrofisiologia, Neuroaudiologia e Neurociência;

  • Instagram: @misanfins

  • Email: msanfins@uol.com.br e msanfins@unifesp.br


Baixe o artigo para leitura:


Comentários


bottom of page