Transtornos de Tolerância aos Sons (Parte I)
- Milaine Dominici Sanfins

- 27 de ago.
- 8 min de leitura
Anna Carolina Marques Perrella de Barros, Fátima Cristina Branco Barreiro, Piotr Henryk Skarzynski e Milaine Dominici Sanfins
O presente boletim abordará um tema de muita relevância clínica, os Transtornos de Tolerância aos Sons (TTS). Entretanto, ainda há muitos questionamentos e diversos pontos que devem ser esclarecidos e aprofundados. Assim sendo, convidamos você a nos acompanhar nesta trajetória neste campo tão desafiador e deslumbrante do TTS.
O QUE SIGNIFICA O TERMO TOLERÂNCIA AOS SONS?
A tolerância a sons, um elemento crucial para o bem-estar humano, representa a capacidade individual de suportar e se adaptar a diferentes intensidades e tipos de estímulos sonoros sem experimentar reações adversas significativas, como:
desconforto;
dor;
alterações fisiológicas e psicológicas.
Todavia, existem alguns indivíduos que reportam reações negativas aos sons evidenciando, desta maneira, uma tolerância reduzida aos estímulos sonoros. Essa capacidade, intrinsecamente variável entre indivíduos, é modulada por uma complexa interação de fatores fisiológicos, psicológicos e ambientais.
FATORES FISIOLÓGICOS:
Saúde Geral: Doenças crônicas, como diabetes, hipertensão e doenças autoimunes, por exemplo, podem afetar o sistema auditivo e reduzir a tolerância a sons. Condições neurológicas, como enxaqueca e epilepsia, também podem influenciar a sensibilidade auditiva.
Idade: O processo natural de envelhecimento impacta a audição, comumente resultando em presbiacusia, a perda auditiva gradual relacionada à idade. Essa condição afeta a capacidade de discriminar frequências, especialmente sons agudos, e também pode resultar em uma redução de tolerância aos sons.
Acuidade Auditiva: A estrutura e a função do sistema auditivo, incluindo a sensibilidade das células ciliadas na região da cóclea, influenciam, diretamente, na percepção e na tolerância aos sons. Variações na sensibilidade auditiva podem ser hereditárias ou adquiridas, como em casos de lesões ou doenças que envolvem o Sistema Nervoso Auditivo Periférico e/ou Central.
FATORES PSICOLÓGICOS:
• Estado Emocional: O estado emocional modula a percepção sensorial. Exemplificando, sintomas como ansiedade, estresse e fadiga podem aumentar a sensibilidade e, consequentemente, reduzir a tolerância a sons. Cabe aqui, mencionar que, as manifestações emocionais podem ocorrer mesmo para um estímulo sonoro de fraca intensidade e, frequentemente, não está associado ao nível de audibilidade do indivíduo. A justificativa destes achados é que, nos distúrbios de tolerância aos sons, pode decorrer do envolvimento do sistema auditivo, do sistema límbico e do sistema nervoso autônomo.
• Experiências Prévias: Vivências traumáticas associadas a sons específicos podem gerar respostas condicionadas de medo ou aversão, impactando na tolerância sonora.
• Traços de Personalidade: Indivíduos com traços de introversão ou alta sensibilidade sensorial tendem a apresentar menor tolerância tanto a ambientes ruidosos quanto a estímulos sonoros intensos.
FATORES AMBIENTAIS:
Tipo de Som: A frequência, complexidade e previsibilidade do som influenciam sua percepção. Sons agudos, irregulares e imprevisíveis tendem a ser menos tolerados do que sons graves, harmônicos e previsíveis.
Intensidade: A intensidade sonora, medida em decibéis (dB), é um fator crucial na tolerância. Exposição prolongada a sons acima de 85 dB pode causar danos permanentes às células ciliadas da cóclea, levando à perda auditiva.
Duração da Exposição: O tempo de exposição ao som é determinante para a tolerância. Mesmo sons de intensidade moderada podem se tornar intoleráveis com a exposição prolongada.
Contexto: O contexto em que o som ocorre influencia sua percepção e tolerância. Sons considerados agradáveis em um determinado contexto podem ser perturbadores em outro.
CONSEQUÊNCIAS DA DIMINUIÇÃO DA TOLERÂNCIA A SONS:
A diminuição tolerância a sons pode acarretar diversas consequências negativas para a saúde e o bem-estar, incluindo:
Problemas de Saúde Mental: A diminuição da tolerância a sons por si só não leva a complicações físicas adicionais. No entanto, o fardo psicológico pode resultar em morbidade significativa, como aumento do estresse, ansiedade, irritabilidade, insônia, e, consequente comprometimento da qualidade de vida. O ruído excessivo contribui para o aumento do estresse, ansiedade, irritabilidade, dificuldades de concentração, distúrbios do sono e redução da qualidade de vida, entre outros.
Problemas Sociais: pode afetar as interações sociais e levar uma pessoa a evitar reuniões sociais ou locais públicos na tentativa de escapar de sons intensos, o que leva a sentimento de isolamento.
A diminuição da tolerância a sons pode manifestar-se em condições como hiperacusia (sensibilidade aumentada a sons) e misofonia (aversão a sons específicos).
HIPERACUSIA X MISOFONIA
Existem semelhanças e diferenças entre hiperacusia e misofonia. No quadro abaixo, didaticamente, pode-se observar os aspectos específicos que delimitam cada distúrbio e que servirá de base para o aprofundamento do tema.

Cabe ainda mencionar que o desconforto aos sons pode ainda ocorrer e se manifestar em diferentes contextos e por mecanismos distintos. Um desses cenários é a presença de recrutamento.
O QUE É RECRUTAMENTO?
Trata-se de um fenômeno coclear que ocorre em indivíduos com perda auditiva do tipo neurossensorial. Para compreender o recrutamento, é fundamental destacar a complexa dinâmica da cóclea, estrutura responsável pela transdução do som em impulsos nervosos.
Nas células ciliadas externas da cóclea, existe um mecanismo de amplificação que permite a percepção de sons em diferentes intensidades. Em indivíduos com perda auditiva do tipo neurossensorial, especialmente quando há dano nessas células ciliadas externas, esse mecanismo de amplificação é comprometido.
O recrutamento surge nesse contexto como uma resposta anormal ao aumento da intensidade sonora. A percepção do volume sonoro se torna distorcida, com uma rápida transição de um som fraco para um som intensamente alto e desconfortável.
Imagine que o volume do som seja controlado por um botão giratório: em uma audição normal, a rotação do botão aumenta o volume de forma gradual e linear. No recrutamento, o controle de volume se torna impreciso, com saltos abruptos na intensidade sonora.

Essa sensação de desconforto e distorção sonora impacta significativamente a qualidade de vida dos indivíduos, dificultando a comunicação, a participação em atividades sociais e o apreciar de música. O recrutamento pode estar associado a diversas causas, como:
exposição a ruídos intensos;
processo de envelhecimento;
doenças;
fatores genéticos.
Cabe ressaltar que o recrutamento é um fenômeno exclusivo da perda auditiva coclear e pode coexistir com algum outro transtorno da tolerância aos sons.
AVALIAÇÃO E DIAGNÓSTICO DOS TRANSTORNOS DA TOLERÂNCIA AOS SONS
O diagnóstico preciso do recrutamento é fundamental para a implementação de estratégias de manejo adequadas.
A audiometria tonal liminar é essencial para investigar a presença ou não de perda auditiva, que é condição obrigatória para o recrutamento.
A pesquisa do reflexo acústico estapediano é indispensável na investigação da presença do recrutamento, cuja análise é feita considerando-se os limiares dos reflexos acústicos estapedianos e os limiares auditivos tonais obtidos à audiometria.
A determinação dos limiares de desconforto para sons (loudness discomfort levels - LDL), juntamente com entrevista e questionários específicos, como o Questionário de Hiperacusia, são essenciais para a determinação da presença e do tipo de transtorno de tolerância aos sons.
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AUTORES

FGA. DRA. ANNA CAROLINA MARQUES PERRELLA DE BARROS
Fonoaudióloga Clínica;
Doutora e Mestre em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Distúrbios da Comunicação Humana da Universidade Federal de São Paulo/ Escola Paulista de Medicina (UNIFESP/EPM);
Especialização em Audiologia Clínica pela Irmandade de Misericórdia da Santa Casa de São Paulo e pelo Centro de Estudos dos Distúrbios da Audição (CEDIAU);
Graduação em Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP);
Professora do Curso de Especialização em Audiologia Clínica (Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein e Faculdade CEAFI) e de cursos de extensão (Fonoaudiálogo).
Membro do Grupo de Estudo e Pesquisa em Zumbido e Sensibilidade a Sons Prof. Yotaka Fukuda, da Universidade Federal de São Paulo.

PROFA. DRA. FÁTIMA CRISTINA BRANCO BARREIRO
Professora Adjunta da Disciplina dos Distúrbios de Audição do Curso de Fonoaudiologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP);
Doutorado em Neurociências e Comportamento pela Faculdade de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP);
Especialista em Audiologia pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia;
Graduação e Mestrado em Fonoaudiologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP);
Diretora Secretária da Academia Brasileira de Audiologia (2015-2017 e 2023-2025);
Membro da comissão de ensino e pesquisa da Academia Brasileira de Audiologia (2018-2020 e 2020-2022);
Revisora de artigos científicos e capítulos de livros na área de Audiologia, Otoneurologia, Zumbido e Hipersensibilidade a Sons.

Professor, Otorrinolaringologista, Mestre e Doutor pela Medical University of Warsaw;
Realiza trabalho científico, didático, clínico e organizacional no World Hearing Center of Institute of Physiology and Pathology of Hearing, Institute of Sensory Organs and Medical University of Warsaw;
Especialista em otorrinolaringologia, otorrinolaringologia pediátrica, fonoaudiologia e saúde pública;
Participou da 3ª Reunião de Consulta no Fórum Mundial de Audição da Organização Mundial de Saúde (OMS);
Membro do Roster of Experts on Digital Health da OMS;- Vice-Presidente e Representante Institucional do ISfTeH;
Presidente eleito do Conselho Consultivo Internacional da American Academy Otoringology - Head and Neck Surgery (AAO-HNS);
Membro do Departamento de Congressos e Reuniões da European Academy of Otology and Neuro-otology (EAONO), Representante Regional da Europa da International Society of Audiology (ISA), Vice-Presidente do Hearing Group, Auditor da European Federation of Audiology Societies (EFAS), membro do Facial Nerve Stimulation Steering Committee;
Secretário do Conselho da Sociedade Polonesa de Otorrinolaringologistas, Foniatras e Audiologistas. Membro da Comissão de Auditoria (2018–2019);
Embaixador da Boa Vontade representando a Polônia no Encontro Anual e Experiência OTO da AAO-HNSF 2021 e, desde 2021, membro do Comitê de Dispositivos Auditivos Implantáveis e do Comitê de Educação em Otologia e Neurotologia da AAO-HNS;
Comitê Consultor de Especialistas Internacionais do CPAM-VBMS, membro honorário da ORL Danube Society e membro honorário da Société Française d’OtoRhino Laryngologie;
Membro do Conselho do Centro Nacional de Ciências.

Professora Adjunta da Disciplina dos Distúrbios de Audição do Curso de Fonoaudiologia da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP);
Membro do grupo de pesquisa do Institute of Physiology and Pathology of Hearing and World Hearing Center, Kajetany, Poland;
Professora do Curso de Pós-Graduação em Audiologia Clínica pelo Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa do Hospital Albert Einstein.
Pós-doutorado pelo World Hearing Center, Varsóvia, Polônia;
Doutorado sanduíche pela Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas (FCM UNICAMP) e pela Università degli Studi di Ferrara/Italy;
Especialista em Audiologia pelo Conselho Federal de Fonoaudiologia;
Graduação e Mestre pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP);
Membro da comissão de ensino e pesquisa da Academia Brasileira de Audiologia (2024-2026);
Relatora do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Paulo;
Revisora de artigos científicos e capítulos de livros na área de Audiologia, Eletrofisiologia, Neuroaudiologia e Neurociência;
Instagram: @misanfins
Email: msanfins@uol.com.br e msanfins@unifesp.br
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